domingo, 15 de junho de 2014

Uma história...

O homem que venceu o medo
João Oleiro era um homem muito medroso. Morria de medo de doenças, de ladrões e até de fantasmas. Ele tinha muitas qualidades e gostava de trabalhar, fazendo com perfeição belos objetos de barro, mas paralisava-o o medo de não vender o que produzisse, o medo de ser roubado, o medo de ficar na miséria.
De tanto medo, quase não saía de casa e evitava amigos. Seus negócios, que já não iam muito bem, piores ficaram quando um outro oleiro instalou-se na cidade e roubou-lhe a pequena freguesia que lhe restava. João começou a fazer dívidas e aos poucos os fantasmas que temia passaram a tomar corpo na forma de credores que batiam à sua porta e o ameaçavam de prisão.
Desesperado, não vendo saída para os seus problemas, João Oleiro resolveu matar-se... “Por que não?”, pensou ele. “A vida para mim não vale mais nada. Não tenho amigos, não tenho fregueses, não tenho dinheiro nem para comer. Está resolvido: vou me matar.”
Assim que decidiu isso, João parou de se atormentar. Com a calma advinda do irremediável, ponderou que, já que aquele seria seu último ato, deveria fazê-lo bem feito. Como não fosse nada preguiçoso, resolveu primeiro fabricar um bom caixão para si mesmo. Lembrou-se de ter visto um velho barco abandonado na beira do rio e, à noite, tomando cuidado para não ser visto, foi buscá-lo. Em casa, cortou a madeira e passou o dia todo lixando, martelando, pintando. Já era tarde quando o caixão ficou pronto; muito bem acabado, parecia obra de um mestre.
Satisfeito consigo mesmo, João resolveu comemorar. Esquecendo que já ninguém lhe vendia fiado, entrou na taberna e pediu, todo cheio de si, uma caneca de cerveja. O taberneiro, diante daquela pose confiante, não ousou recusar, porém ficou intrigado: um homem naquela situação miserável rindo à toa? “Ali tem coisa”, pensou. Um dos empregados da taberna lembrou-se de tê-lo visto em atitude suspeita lá na beira do rio. – Talvez tenha encontrado algum tesouro – arriscou ele ao patrão.
João bebeu sua cerveja e voltou para casa. Muito contente, dormiu uma noite  cheia de sonhos agradáveis. Na manhã seguinte, acordou sentindo-se muito bem. Abriu as janelas de sua casa, deixou o sol entrar e decidiu que poderia conceder-se três dias de prazo antes de matar-se, pois queria aproveitar aquela sensação de bem-estar. E como o seu coração estivesse leve, pegou um pouco de barro e pôs-se a modelar tudo o que lhe vinha à imaginação, sem medo de censuras.
Trabalhou com gosto e no fim do dia admirou com orgulho a sua produção: vasos e potes lindos, originais, verdadeiras obras-primas.
Satisfeito, novamente João foi à cidade comemorar, mal cabendo em si de felicidade. Seus amigos, estranhando aquela atitude, resolveram, no dia seguinte, dar uma espiada em sua casa. E lá dentro viram João, que trabalhava assobiando, rodeado de belíssimas peças de barro. Um dos amigos resolveu entrar e oferecer um bom dinheiro por um dos vasos. Outros logo o imitaram, e assim ele foi vendendo tudo o que produzia. 
 No fim daqueles três dias, João resolveu se permitir mais um prazo. “Afinal”, pensou, “sou eu quem vai morrer, posso marcar o dia que quiser. Além disso, estou cheio de encomendas e não quero decepcionar os amigos. Mais uma semana seria bom”, determinou e continuou trabalhando feliz, criando arrojadas peças . Não demorou que seus objetos de barro ganhassem fama. O outro oleiro, seu concorrente, não conseguiu segurar a freguesia: todos só falavam nos inigualáveis vasos de João.
 De bem com a vida, é claro que João não pensou mais em morrer. Adiou indefinidamente aquela ideia e tratou de aproveitar sua sorte. Foi ficando rico, pagou suas dívidas, casou-se com uma boa moça e construiu para eles uma bela casa. No fundo da casa, num quartinho fechado a chave, guardou o caixão que fabricara naquele dia de desespero. A todos dizia que ali estava encerrado o segredo de sua prosperidade.
 Só muitos anos mais tarde, depois de uma longa vida venturosa, morreu João Oleiro. Abrindo o quarto secreto, seus netos descobriram que o único segredo da felicidade daquele homem foi ter sabido um dia enterrar o seu medo.

Essa história foi coletada por Rosane Pamplona e publicada no livro Novas Histórias Antigas, da Editora Brinque-Book.

sábado, 14 de junho de 2014

Beija-flor me chamou: olha
Lua branca chegou na hora
O Beija-Mar me deu prova:
Uma estrela bem nova
Na luminária da mata
Força que vem e renova
Beija-Flor de amor me leva
Como o vento levou a folha
Minha Mamãe soberana
Minha Floresta de jóia
Tu que dás brilho na sombra
Brilhas também lá na praia
Beija-Flor me mandou embora
Trabalhar e abrir os olhos
Estrela d'Água me molha
Tudo que ama e chora
Some na curva do rio
Tudo é dentro e fora
Minha Floresta de jóia
Tem a água
tem a água
tem aquela imensidão
tem sombra da Floresta
tem a luz do coração
Bem-querer!!!
* Essa canção é o nome de um curumim do povo Kampa e é dedicada a todos os curumins de todas as raças do mundo

" A vida me obriga a fazer algo, então eu pinto." René Magritte





sexta-feira, 13 de junho de 2014

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Carlos, você já me disse que nunca precisou do divã do analista. Em que medida a poesia concorreu para isso?
Realmente, mesmo que eu sentisse necessidade do divã, seria impossível, porque não havia o divã no Brasil. Os divãs existiam, mas divãs comuns. Ninguém se lembraria de deitar neles e dizer coisas da sua infância, coisas tenebrosas, para um especialista.
A figura do analista veio muito depois da minha infância e da minha mocidade. E já agora, a essa altura da vida, acho que nenhum analista me receberia, nem haveria mais necessidade.
De fato, a poesia exerceu sobre mim um papel bastante salubre ou tonificante, procurando, sem que eu percebesse, clarear os aspectos sombrios da minha mente.
Tive uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada. Sentia necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com os amigos não bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus problemas.
Eram questões que vinham, digamos, de gerações anteriores, de casamentos de tios com sobrinhas, de primos com primas, tudo isso se acumulando na mente, criando problemas de adaptação ao meio, de dúvida, de perplexidade etc.
Então comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento automático. Foi uma tendência natural do espírito e senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha. Como se vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi, para mim, um divã.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Neurose

"Tenho visto as pessoas tornarem-se frequentemente neuróticas quando se contentam com respostas erradas ou inadequadas para as questões da vida. Elas buscam posição, casamento, reputação, sucesso externo ou dinheiro, e continuam infelizes e neuróticas mesmo depois de terem alcançado aquilo que tinham buscado. Essas pessoas encontram-se em geral confinadas a horizontes espirituais muito limitados. Sua vida não tem conteúdo ou significado suficientes. Se tem condições para ampliar e desenvolver personalidades mais abrangentes sua neurose costuma desaparecer". (Carl Gustav Jung)